“Muito caro para ver o pôr do sol”: o que está por trás da desvalorização dos profissionais de turismo?
- Cãomigo

- 1 de mai.
- 7 min de leitura

Hoje é 1º de maio. Dia do Trabalho. E não tem data melhor para levantar uma conversa importante que há tempos precisa acontecer com mais profundidade: a desvalorização crônica dos profissionais de turismo no Brasil. Um setor que movimenta bilhões, que emprega milhões, que conecta pessoas e lugares, mas que segue sendo olhado com desconfiança, amadorismo e, muitas vezes, desrespeito.
Hoje mesmo, enquanto organizávamos mais uma experiência guiada de turismo pet friendly, recebemos a seguinte mensagem: "Muito caro para ver o pôr do sol."
Parece inofensivo, né? Quase uma piada. Mas essa frase carrega uma série de camadas profundas e dolorosas que precisam ser desconstruídas.
Porque o que está em jogo aqui não é o valor de um passeio ou de uma vista – que a natureza, sim, nos oferece de graça –, mas o valor do trabalho de quem planeja, estuda, guia, protege, cuida, promove, investe e movimenta a complexa cadeia do turismo.
O que você paga quando "vê o pôr do sol"?
Quando alguém diz que é "muito caro para ver o pôr do sol", essa pessoa não está pagando pela esfera laranja no horizonte. Ela está pagando pela expertise de um profissional que conhece o melhor ponto de vista, que sabe a hora exata, que calculou a logística para chegar lá com segurança e conforto. Está pagando pelos impostos que a agência ou o guia pagam para operar legalmente (federal, estadual, municipal – uma carga tributária altíssima!). Está pagando pelas licenças, certificações, equipamentos de segurança revisados, seguros de responsabilidade civil. Está pagando pelo tempo dedicado ao planejamento, à comunicação com o cliente, à gestão de imprevistos. Está pagando, em suma, pelo trabalho qualificado de pessoas que se dedicaram para que aquele momento, que poderia ser apenas um evento natural, se transforme em uma experiência segura, fluida e inesquecível.
Reduzir tudo isso a "ver o pôr do sol" é uma desvalorização imensa de um trabalho complexo, com altos custos operacionais e uma responsabilidade gigante nas mãos.
Turismo não é só lazer. É trabalho. É responsabilidade.
Segundo o Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC), em 2025, o setor de turismo deverá contribuir com US$ 11,7 trilhões para o PIB global, representando 10,3% da economia mundial. Além disso, espera-se que o setor suporte 371 milhões de empregos em todo o mundo, um aumento de 14 milhões em relação ao ano anterior.
No Brasil, o turismo sustenta atualmente cerca de 8 milhões de empregos, representando 8% do PIB nacional .
Entre janeiro e julho de 2024, foram criadas 110.012 novas vagas formais no setor de turismo, um resultado 35% superior ao registrado na agropecuária no mesmo período, que admitiu 80.999 trabalhadores.
São números expressivos que mostram a força econômica do turismo. Mas, mesmo com essa relevância, a percepção sobre o trabalho no setor ainda é, muitas vezes, distorcida e amadora. E aí entramos na discussão central deste texto: a desvalorização crônica de quem vive do turismo – especialmente dos guias.
“Mas é só andar na trilha…” A invisibilidade do trabalho do guia.
A gente escuta isso o tempo todo, em especial no turismo de natureza: "Por que pagar um guia se eu sei andar?"
Mas ninguém fala "por que pagar um médico se eu sei tomar um remédio".
Ou "por que pagar um engenheiro se eu sei martelar um prego".
Ser guia de turismo vai muito além de "caminhar na trilha".
Para exercer a profissão legalmente no Brasil, é preciso concluir um curso técnico de formação profissional em Guia de Turismo e estar cadastrado no Cadastur, do Ministério do Turismo. Isso é o básico!
Além disso, a maioria dos bons guias investe constantemente em cursos de idiomas, primeiros socorros (essencial!), história, geografia, biologia, ecologia, técnicas de condução de grupo, segurança em ambientes naturais e urbanos, e muito mais. É um investimento contínuo e alto – de tempo, dinheiro e energia – para oferecer um serviço de qualidade, seguro e enriquecedor.
Ser guia é ser intérprete de territórios, mediador de culturas, condutor de segurança, guardião ambiental, contador de histórias, promotor da economia local. É profissão regulamentada por lei (Lei nº 8.623/1993). Não é hobby. É trabalho sério. É dedicação integral.
O racismo estrutural na desvalorização do trabalho
É impossível falar sobre a desvalorização do trabalho no Brasil sem tocar em uma ferida histórica profunda: o país foi fundado sobre uma base escravocrata, que naturalizou o não pagamento – ou o pagamento irrisório – por serviços prestados.
Como bem apontou Darcy Ribeiro em sua obra fundamental "O Povo Brasileiro", a estrutura social brasileira se moldou a partir de profundas desigualdades, com o trabalho manual e de serviços sendo historicamente associado à servidão e, portanto, desvalorizado. E essa herança cultural perversa segue até hoje, manifestando-se nas relações de trabalho. Há, ainda, uma ideia arraigada de que determinadas atividades (sobretudo as manuais, as ligadas à natureza, ao cuidado ou à hospitalidade, como muitas no turismo) não exigem técnica, esforço intelectual, estudo – e, portanto, não devem ser bem remuneradas.
A frase “Muito caro para ver o pôr do sol” é um sintoma dessa mentalidade. Ela ignora todo o trabalho por trás da experiência e a associa a algo que "não vale" o custo, ecoando a desvalorização histórica do serviço e do conhecimento prático no Brasil.
O desafio interno: a falta de união e a desvalorização "dentro de casa"
E se a desvalorização externa já é um desafio gigante, precisamos ser honestos e falar sobre a desvalorização que acontece dentro do próprio trade de turismo.
É um absurdo, mas acontece. Vemos hotéis e pousadas que não pagam comissão pela agenciamento, que não fazem tarifa net para a agência ou o guia que está vendendo a hospedagem deles e trazendo o cliente. Vemos restaurantes que recebem um grupo inteiro de turistas graças ao trabalho de venda e condução do guia, e ainda cobram o prato de comida desse mesmo guia que está ali trabalhando, garantindo que o grupo consuma no local. Vemos espaços turísticos que não valorizam o trabalho dos guias qualificados, preferindo não contratar mão de obra especializada ou pagar valores irrisórios. Isso quebra a lógica da cadeia, não faz o menor sentido do ponto de vista de negócio e, o mais grave, desrespeita o profissional que está ativamente gerando receita para o outro.
Esses exemplos escancaram uma falta de união gritante no segmento. O turismo é, por natureza, uma rede, um ecossistema interligado. A experiência do viajante envolve transporte, hospedagem, alimentação, atividades, guias, comércio local. Quando cada parte dessa rede opera isolada, ou pior, compete contra as outras, o resultado é catastrófico para todos. Em vez de enxergar parceiros que trazem clientes e somam valor, muitos vêem concorrentes ou "elos" a serem explorados, tentando trabalhar sozinhos e fugindo de pagar comissões ou tarifas justas. Essa falta de coesão interna só agrava a percepção externa de amadorismo e a desvalorização que tanto combatemos. Precisamos entender, de uma vez por todas, que juntos somos muito mais fortes e que a colaboração é o caminho para o sucesso sustentável de todo o setor.
Empreender no turismo: uma escolha com custos altos e ganhos incertos
Quem empreende no setor turístico no Brasil sabe bem: muitas vezes não há férias remuneradas, nem 13º, nem seguro desemprego, nem benefícios da CLT garantidos. Há paixão, muita resiliência, boletos para pagar e um compromisso diário com o encantamento do outro.
Trabalhamos quando todo mundo está descansando: fins de semana, feriados, alta temporada. Fazemos plantão enquanto os outros viajam. Produzimos rotas, treinamos equipe, respondemos cliente, revisamos normas de segurança, garantimos o bem-estar dos participantes (humanos e de quatro patas!), e asseguramos o impacto positivo no meio ambiente e nas comunidades locais. Mas raramente isso é visto – e reconhecido – como trabalho intelectual, técnico, operacional e essencial que é.
"Turismo? Ah, mas qualquer um pode fazer!" A banalização da profissão.
Outro ponto delicado (mas necessário) é o amadorismo desenfreado e a banalização do turismo como campo profissional. A gente vive em uma era onde qualquer um que viajou bastante, tirou fotos bonitas para o Instagram e criou um roteirinho para amigos se sente no direito de se autodenominar "especialista em turismo" ou até mesmo de vender serviços.
Isso é ainda mais evidente quando se trata de turismo pet friendly.
Pessoas sem qualquer formação em turismo, sem conhecimentos básicos sobre a área e sobre a cadeia de turismo, surgem todos os dias se autoproclamando especialistas em turismo pet friendly.
Ter dentes não faz de ninguém um dentista.
Usar roupas não faz de ninguém um especialista em moda.
Saber cozinhar em casa não faz de ninguém um chef de cozinha profissional.
Da mesma forma, ter um cachorro e levá-lo para passear NÃO torna alguém um especialista em turismo pet friendly. Ter viajado o mundo sozinho NÃO torna alguém um especialista em logística de grupos ou um guia de turismo.
Essa mentalidade do "qualquer um pode fazer isso" desvaloriza imensamente os profissionais que se dedicam, estudam, investem, se qualificam e operam legalmente para oferecer um serviço de excelência e, crucialmente, segurança. Essa banalização não só prejudica os profissionais sérios, mas também coloca em risco os próprios viajantes e o patrimônio natural e cultural dos destinos.
Turismo responsável: um compromisso coletivo
O turismo responsável é a chave para mudar esse cenário. É uma abordagem que visa minimizar os impactos negativos ao meio ambiente e às comunidades locais, promovendo benefícios econômicos, sociais e ambientais para todos. E valorizar os profissionais do turismo – guias, agências, hotéis, restaurantes, artesãos, motoristas – é parte essencial e inegociável desse compromisso.
A Cãomigo nasceu com essa bandeira: promover um turismo pet friendly que seja responsável, inclusivo e, acima de tudo, valorize as pessoas por trás das experiências. Acreditamos que um turismo mais humano, ético e justo é um turismo melhor para todos – tutores, pets, profissionais e comunidades.
Conclusão: Valorizar é preciso.
Neste Dia do Trabalho, o convite é simples e direto:
Valorize os profissionais do turismo. Todos eles.
Pague pelo serviço justo. Apoie os pequenos empreendedores e as agências locais sérias. Não compactue com o amadorismo e a informalidade que colocam em risco a segurança e desvalorizam o trabalho qualificado. Busque quem tem formação e certificação. Escute quem vive do setor e entende suas complexidades. Incentive boas práticas. E, principalmente, não normalize a ideia de que é caro viver do próprio trabalho, especialmente em um setor que exige tanta dedicação, investimento e paixão.
Darcy Ribeiro, com sua lucidez dolorosa, já dizia: “Fracassei em tudo que tentei na vida. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu tentei mudar o Brasil. O Brasil não quis mudar.”
Mas a gente, que acredita no turismo como força de transformação, segue tentando. Acreditando. Trabalhando. Mesmo quando chamam de passeio o que é trabalho. Mesmo quando desvalorizam o nosso trabalho.
Porque cada vez que um profissional de turismo é valorizado, o setor se fortalece.
E com ele, a experiência de quem viaja.
E com ele, o país inteiro.
Vamos juntos construir um turismo mais justo, digno e valorizado?
Compartilhe essa reflexão! 🐾💛




Excelente texto e necessárias reflexões!